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Trata-se de um continente frágil, que carece de cuidado, uma vez que, caso deixe de funcionar, grande parte ou se não todo o conteúdo, será perdido e dificilmente poderá ser acessado novamente. É necessário cuidado, é ferida aberta: “[...] coloque o dedo na ferida aberta. Lá, onde há sensibilidade, carne ou nervo exposto, há também possibilidade de construção de um novo corpo” (Tessler, 2002, p. 16).

Construo um novo corpo a partir do momento em que coloco-me desbravadora desse continente: decido revisitar essas memórias, mesmo que sejam dolorosas, mesmo que seja a ferida aberta, trato com carinho e enxergo nelas possibilidades de entender como foi que me tornei quem sou hoje.

Acessar esse continente encontra-se em uma lógica de escavação assim como de um trabalho de arqueologia. É como o de procurar artefatos históricos - e de fato trata-se disso, pois há a possibilidade de construção de uma narrativa a partir daquilo que encontro armazenado. Existe aqui uma apreciação pelo obsoleto: me interessa o antigo, que foi deixado de lado. Nesse sentido, podemos compreender que “A arqueologia das mídias é a escavação das ideias perdidas, das histórias alternativas e das condições de existência das mídias.” (Parikka, 2017, p. 203).

O computador ainda existe materialmente, está íntegro, com todas as suas peças, enfim. No entanto, não é possível acessar a internet, o que por si só já tornaria este obsoleto: qual a razão de usar um computador se não para acessar a internet? No contexto desta pesquisa, o computador é entendido como um acervo familiar de imagens, vídeos e outras informações que remetem à um momento específico de uma história.

No geral, este acervo é constituído por: fotografias digitais, guardadas e “organizadas” em pastas, vídeos da família - filmagens em geral, de aniversários, momentos em família, brincadeiras, passeios etc, músicas - estas eram eventualmente armazenadas em um pendrive, para que pudessem ser reproduzidas no rádio do carro, filmes, jogos, desenhos do MS Paint, imagens baixadas da internet e softwares. Desse modo, trata-se de uma constituição de arquivos que datam anos de armazenamento em geral por cada usuário do computador, porém, o meu objeto de interesse é especificamente voltado às imagens, tanto àquelas da família, quanto àquelas baixadas - salvas, de algum lugar da internet. Também os vídeos, a partir destes, tenho reproduções de momentos vividos pela menina de maneira mais “tangível”, assim como consigo compreender mais sobre este ser encontrado.

Para Vigotski (2018) a formação da imaginação do ser humano ocorre a partir de uma atividade combinatória e criadora; combinatória pois forma-se a partir de experiências vivenciadas e partindo destas vivências, criamos novas relações com o mundo ao nosso redor:

Toda atividade do homem que tem como resultado a criação de novas imagens ou ações, e não a reprodução de impressões ou ações anteriores da sua experiência, pertence a esse [...] comportamento criador ou combinatório. (p. 15)

Assim, compreendo que, ao adentrar este continente de memórias estou agindo em prol de uma ação combinatória de momentos em família e em relação ao objeto, a partir das imagens do acervo, crio novos lugares do meu ser, exploro novas questões de uma criança que encontrei: a que cresceu dentro desse continente e acessando estes lugares. A infância é documentada por meios digitais e armazenada nestes, me reconheço criança nesse movimento de procurar, me vejo curiosa.

A menina é a criança que acessava o notebook e que motivou essa pesquisa, uma criança que sempre gostou de “fuçar” por todo o sistema do computador, utilizá-lo em toda a sua glória. Ela nasceu em julho de 2004, desde já envolta daqueles aparatos digitais que eram tão futuristas e impressionantes. O gabinete do computador era uma pequena cidade, os emaranhados de fios denotavam uma coisa muito séria, era um território quase que inabitável para criança. Mas a menina sempre teve o aval do pai e da mãe para explorar esse universo digital, com supervisão e horários estipulados, a criança brincava de computador nos momentos que não estava desenhando ou assistindo na televisão de tubo da sala.

O computador ficava na sala da casa, assim todos utilizavam o mesmo computador, eram dois: um notebook (o qual foi encontrado por mim e motivou minha investigação) e um desktop, com monitor e gabinete, esses aparatos eram utilizados pelo pai, mãe e a menina. Havia uma impressora também, território pouquíssimo acessado pela criança. A impressora era coisa seríssima!

Isso quando muito nova. Pois a menina não entendia quase nada dali, os melhores momentos eram quando o pai colocava um desenho no youtube para ela assistir. Após a alfabetização, o uso daqueles objetos já era mais racional, passou a ter mais autonomia e já conseguia escolher o que queria fazer no meio digital. O seu tempo dentro desse lugar era distribuído entre assistir gameplays de Minecraft e jogar jogos flash no navegador.

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