Assim, Lévy (1999) define o computador da seguinte maneira:
Um computador é uma montagem particular de unidades de processamento, de transmissão, de memória e de interfaces para entrada e saída de informações. (p. 44)
Partindo dessa definição técnica, consigo definir o computador como potência poética, daquilo que armazena uma memória, que serve de arquivo e que acarreta diversas problemáticas acerca desses temas. Desse modo, trata-se do objeto que guarda em arquivos as fotografias da minha infância, os meus desenhos feitos no MS Paint, um acervo completo e que, ao ser acessado, me faz lembrar de momentos apagados, e me coloca novamente em um território antes habitado.
Pesquisadora-arqueóloga, coloco-me em um novo lugar para reencontrar com meu ser criança a partir de um olhar carinhoso e curioso para um passado que vivi, mas que hoje procuro investigar como observadora das personagens que acessaram esse espaço digital e que constituíram um acervo de fotografias neste lugar.
Procuro fazer uma reconstrução afetiva por meio do acesso a esse acervo de fotografias armazenadas em um antigo notebook da família, aquele que todos em casa utilizavam, eu, minha mãe e meu pai. A ideia do reacesso à esse objeto parte da necessidade de entender as relações que foram construídas ao longo dos anos de uso desse computador, que atualmente encontra-se guardado e inutilizado. Investigo as pastas uma por uma: foto por foto, vídeo por vídeo e me vejo habitando um lugar do passado. Atribuo novos significados e assim encontro-me nesta pesquisa.
Por essas razões, esta pesquisa de cunho poético preocupa-se em recorrer à um arquivo digital, que contêm vestígios de um momento vivido por estes personagens, o pai, a mãe e a menina com o propósito de revisitar este passado a partir de um olhar sensível. Deste modo, utilizo da metodologia cartográfica como proposta por Kastrup e Passos (2013) na qual entende que o cartógrafo deve estar em conexão com o objeto de estudo para conseguir compreendê-lo de fato. Estou conectada, eu observo e narro, porém eu já estive naquele lugar.
A partir disso, percebe-se uma necessidade de entender essa passagem do tempo dentro do meu próprio ser poético de pesquisadora-artista. Assim, surge um questionamento: de que modo esse objeto, o computador, é compreendido nesse processo nostálgico de formação pessoal, dos vestígios digitais e das memórias desse ser criança?
Percebo que revirando o passado consigo compreender de fato os desdobramentos do presente. Revisitar as memórias da infância faz-se preciso nesse sentido. Pensando em uma produção e processo de criação, Dewey (2019, p. 90) coloca o tempo como um fator essencial:
O tempo, como organização da mudança, é crescimento, e o crescimento significa uma série variada de mudanças, entra nos intervalos de pausa e repouso, de conclusões que se tornam os pontos iniciais de novos processos de desenvolvimento.
Entendo que analisar a minha relação pessoal e da minha família com este objeto que cerca a nossa história, faz-se necessário no âmbito de narrar uma história verídica como forma de expor questões sensíveis que envolve todo um acervo de fotografias e vídeos, que foi constituído de modo coletivo, armazenados no computador. Trata-se de um exercício formativo. Coloco-me à disposição para compreender as delicadezas desse acervo, entendo o computador como o fio condutor da minha narrativa. Em Kastrup e Passos (2013) temos que:
A pesquisa cartográfica faz aparecer o coletivo, que remete ao plano ontológico, enquanto experiência do comum e, dessa maneira, é sempre uma pesquisa-intervenção com direção participativa e inclusiva, pois potencializa saberes até então excluídos, garante a legitimidade e a importância da perspectiva do objeto e seu poder de recalcitrância. (p. 266)
Intervenho no meu ser quando coloco-me em frente às memórias desse ser criança. Reorganizar essas memórias em novos territórios relaciona-se com uma prática cartográfica, do computador surgem novas narrativas. Assim:
O método cartográfico propõe que se trabalhe com o entre, sugere que a pesquisa acontece no que se vivencia entre o pesquisador e o território de pesquisa. O que vive um pesquisador-cartógrafo, reside exatamente no ato de cartografar o que é móvel, o que não é estático: ele captura o entre, em seus campos de abrangência. (Richter e Oliveira, 2017, p. 30)
Para cartografar, é necessário compreender o objeto enquanto potência dotada de problemáticas. O computador neste contexto revela-se enquanto potencialidade de reflexão poética, pois nele está guardado delicadezas sobre mim que acordam um outro tipo de relação com o mundo, que me faz lembrar sobre como fui criança. Desse modo, procuro expor, neste trabalho poético-investigativo, parte das reflexões que foram desenvolvidas partindo do acesso à esse objeto, suas particularidades e desdobramentos. Mais uma vez, compreendo meu trabalho enquanto um exercício formativo, concomitante à uma análise cartográfica para entender esse acervo como um território de acesso e de (re)construção pessoal e familiar.
Há uma necessidade de estar à disposição para acessar este lugar que pode ser sensível para mim: não posso voltar no tempo. Não dá pra voltar no tempo. Mas compreendo a possibilidade de entendê-lo como potência de criação de um novo território a ser habitado, agora no presente.
No contexto da família que estou analisando, entendo que o meio digital tornou de fácil acesso a prática de fotografar e também de armazenar esses registros, visto que existem poucas fotografias analógicas reveladas e registros de quando a menina nasceu, justamente por ser uma prática custosa para essas pessoas. Assim, analiso essa infância registrada por meios digitais, a memória desse ser criança é constituída por vias desses aparatos eletrônicos.
Em síntese, escolho explorá-lo de modo em que consigo reconstruir minha história de modo não-linear, mas a partir das memórias que são desencadeadas por meio do acesso à esse objeto, escrevo sobre mim e sobre as memórias que rondam esse notebook com um olhar de historiadora e desbravadora de um continente abandonado - observo meu passado assim, coleto fontes e histórias, revisito memórias partindo da afetividade pelo objeto e pela infância. Eu continuo sendo a menina que brincava no computador.
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